O #MeToo e a comunidade de direito



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            No intuito de mostrar às vítimas de agressão sexual que elas não se achavam sozinhas e que o seu caso não era isolado, Tarana Burke, uma advogada norte‑americana defensora dos direitos das mulheres, lançou em 2006 o hashtag #MeToo. Em 2017, a atriz Alyssa Milano escreveu num tuíte: «If you’ve been sexually harassed or assaulted write ‘me too’ as a reply to this tweet.» Na sequência desse afixo e das reações que ele gerou, o movimento #MeToo surgiu e ganhou dimensão internacional. Em causa, a denúncia do assédio e do abuso sexual, nomeadamente na esfera do trabalho. Depois das queixas feitas por mulheres portuguesas, o #MeToo avança agora no nosso país. Tenho seguido o debate e visto lucidez, derivas e sede de sangue. As notas que aqui deixarei são gerais e abstratas, não quero que a referência a casos concretos distraia o leitor daquilo que, no meu parecer, é o fundo da resposta a questões medulares.

            O assédio sexual é um flagelo, importa censurá‑lo. O #MeToo cria empatia entre a sociedade e as vítimas, contribui para quebrar os anteparos de um mundo masculinizado e para desmontar os alicerces do machismo. As queixas levam a punir indivíduos que praticaram assédio, morigeram e dissuadem potenciais importunadores, fazem tomar consciência do fenómeno e, de modo mediato, educam.

            Porque as vítimas merecem a minha empatia e percebo quão duro e doloroso é expor o sucedido, penso que, num certo grau, lhes cabe decidir quando falam e o que contam. E não peço que nomeiem o agressor. Se a isso fossem constrangidas, muitas delas calar‑se‑iam. Mas, se o nomearem em público, têm de produzir prova. A denúncia nominal — falsa ou verdadeira — sem prova deixa marca negativa na pessoa que dela foi alvo, depressa sentenciada pelos tribunais populares e pelos juízes primários das redes sociais. A sanção formal resulta de um processo com garantias de defesa, próprio ao Estado de direito. A comunidade de direito em que vivemos assim o exige. Acusar e indicar um nome não equivale, nunca poderá equivaler, a provar a culpa. Defender tese diversa é abrir uma caixa de Pandora que encerra males maiores e ofensa ao Estado de direito, é admitir a denúncia infundada e a justiça do povaréu. Não é de ânimo leve que o escrevo, custa‑me fazê‑lo. Sei que há poucos casos de queixa apócrifa, que é difícil provar o assédio, que predadores ficarão por punir. Porém, numa coletividade organizada segundo princípios de direito (como o da presunção de inocência), não cabe corolário distinto.

            Os caminhos a trilhar são outros. Desde logo, a correção das assimetrias que permitem o exercício abusivo e arbitrário do poder e a mudança nos espíritos que acabe com certas condutas dos machos tidas por aceitáveis e mesmo dignas de elogio. Os núcleos que formam a sociedade, mormente aqueles em que se estabelecem relações de trabalho, têm de criar meios eficazes de prevenção do assédio, canais viáveis de denúncia e mecanismos de resguardo contra represálias. E o legislador deve, na medida em que isso seja possível no âmbito do Estado de direito, facilitar a produção de prova. Todavia, sob pena de retrocesso civilizacional, a mera queixa feita por uma pessoa jamais pode equivaler, per se, à culpa de outra.

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Paulo Pego
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