Ao Desconhecido Meu Amigo...



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O Desconhecido mora ao lado. Quase nunca nos vemos. Quase não nos falamos. Trocamos tímidos “- Olá!”, “- Oi, tudo bem?” nunca esperando verdadeiramente qualquer resposta específica ao “- tudo bem?”. Esperamos mesmo só o silêncio, o nunca termos de nos abrir um ao outro. E, claro,  não ter que contar um com o outro. Porque nos desconhecemos. Porque gostamos de fingir que somos independentes, livres, não precisamos aguentar as vicissitudes um do outro.  

O desconhecido que mora ao lado, conheço-o há muitos anos. Menos pelos latidos do seu pequeno cão, que nunca vi, mas ouço com alguma frequência. Menos pelos sons da TV que ouço vez por outra, ao abrir a porta do elevador e, menos ainda, pela forma esmerada com que ele cuida das flores. Conheço esse desconhecido há muito tempo, mais pelas marcas d´alma calejada dos desencontros, das surpresas menos boas com que a vida nos brinda, das amizades que se cansam e têm que se reinventar ou decidem se desfazer… Conheço o desconhecido que mora ao lado pela minha face no espelho invertido, pelo côncavo do vidro que teimo em esconder para abafar a solidão que tentamos, todos,  disfarçar – alguns trabalham demais, outros nunca se dão ao luxo do vagar pelo pouco fazer de dias de domingo ou com cara de domingo, outros tantos se debruçam sobre as convenções...

Um desconhecido mora ao lado. Soube seu nome pela primeira vez por causa de uma correspondência que chegou por engano na minha porta – e era dele. Tive dificuldade de pronunciar seu nome, não só porque as letras eram mais difíceis juntas como as do meu último nome, mas também porque não havia a quem eu as pudesse pronunciar com gosto, em alto e bom som. Limitei-me a deixar a tal correspondência em seu próprio hall. Mas naquela noite, a imaginação plantou asas e por horas especulei de onde seria aquele nome, de onde teriam vindo os seus antepassados, que homem era aquele que habitava sozinho no mesmo apartamento por provavelmente tantos anos, quem mais lhe faria companhia, além do cãozinho latidor… Havia familiares? Já sabia que se tratava de um senhor de mais de oitenta anos, pois nos cruzamos indo e vindo pelo hall e eu tomei a iniciativa de lhe perguntar se precisava de algo durante estes tempos pandêmicos, e que pudesse contar sempre comigo, ao que ele respondeu agradecido, dizendo não temer o contato, pois já havia se vacinado pois tinha “oitenta e um anos”. 

Dias mais tarde, dispus-me novamente a ajudá-lo com o que se fizesse necessário, quando ele quisesse ou precisasse – um mercado, uma farmácia, ou no que mais ele acenasse, dentro das minhas possibilidades! Um sorriso e um tímido “- obrigado” se seguiram a uma face de mil faces. Uma face como a minha, a sua, as nossas faces neste momento tão incerto – como o céu que espera a chuva que demora dias... Mas sempre ouvi que “quem vê cara, não vê coração”. E por mais que eu leia os olhos por trás das máscaras que ele usa quando vai ao hall e damos sorte de nos vermos, nunca ao certo saberei o que vai ali dentro, de um corpo tão vivido no tempo dos anos, calejado de experiências, de expectativas frustradas e, agora, de uma pandemia e uma crise sócioeconomica…

O estranho mora ao lado, mas é o familiar que se aproxima e se desconhece ainda mais...Pondero se devo estender-lhe um bolo de banana (ou, no mínimo, um ou dois pedaços) dos que compro do amigo Eduardo às sextas-feiras, num gesto de simpática compaixão, como sugeriu o amigo John, para que eu pudesse conhecer ou minimamente adentrar a vida do desconhecido vizinho… Pondero se ele o comerá ou terá a quem o destinar, caso o seu sistema não esteja acostumado com farinha, farelo, bananas, castanhas… Ou se, diferentemente de mim, ele desaprovará a falta do açúcar refinado e julgará se tratar de algo muito alternativo… Prefiro eximir-me de lhe perguntar isso ou aquilo...e escolho guardar a curiosidade do que um dia desconhecerei – se houver tempo para isso! Acho que ambos não queremos demasiado contato. Mas, também,  não quero deixar que a estranheza do vizinho que mora ao lado morra no abismo de todas as distâncias e que nos una apenas este último apelo da pandemia, a Vida…

Então, tomo coragem, saio no hall do andar com a vista mais linda, menos pelas alturas que dão direito a uma visão privilegiada da cidade, e mais pelas belas flores cultivadas pelo senhor estranho e desconhecido que mora ao lado. Caminho alguns passos, e com a coragem da valentia de que nos  recobrimos todos, sobreviventes da pandemia que somos, toco a campainha – o cão está silencioso esta tarde. Toco a campainha. O silêncio domina a resposta. Desconheço os passos do vizinho que mora ao lado. Ainda bem. Mas, voltarei. Terei que esperar uma semana inteira para lhe poder entregar umas fatias de bolo bem frescas! O desconhecido mora ao lado, meu amigo! E espero ter tempo de saber se ele se alegrará com as fatias do bolo de banana sem açúcar...

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Gisele Wolkoff
Author: Gisele WolkoffEmail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.
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