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O cinema tem esta peculiaridade de antecipar a realidade e, por outro lado, chegar sempre tarde de mais. De registar gestos, que passam despercebidos pela história, aos quais nos reportamos em momentos decisivos. A função do cinema pode ser apenas a de oferecer companhia às necessidades da imaginação e do olhar; ainda assim, esse apetite pode ser descrito como uma necessidade especificamente humana. Num certo sentido, o mundo ‘lá fora’ foi transformado numa ‘Grande Imagem’, cinematográfica, e nós, de criaturas viradas para a acção, tivemos de nós contentar com o olhar, a imaginação e, por fim, os ecrãs que servirão, durante um longo período de tempo, como acesso predilecto à realidade.
Poderia referir os ‘Blockbusters Virais’ como Contagion (2011) ou Outbreak (1995), para retratar casos de filmes que anteciparam a situação que todos experienciámos; mas os exemplos de hoje serão outros.
Penso nos filmes de viagem de Wim Wenders onde, não obstante os movimentos das personagens, há uma sensação de paralisia, de impossibilidade de viragem, de actualização dos sujeitos.
Em especial no filme Der Stand der Dinge (O estado das coisas; 1982), que consegue espelhar o sentimento de paragem do curso normal da vida. Neste filme uma equipa de filmagem enfrenta uma paragem do seu próprio filme: o dinheiro acaba e o produtor foge; quando não há filme para fazer, os actores são atirados à sua interioridade (à espera que o produtor apareça e que a produção possa, finalmente, reiniciar); obrigados a enfrentar o tédio do passar do tempo, quando nada acontece.
Outro exemplo é a estranha amalgama de cenas de filmes, organizadas numa leitura autobiográfica que Frank Beauvais operou em Ne croyez surtout pas que je hurle (Não pense que eu vou gritar; 2019), em que o realizador explora o período de retiro na Alsácia, no qual se encontrou isolado da cidade, dos rostos familiares, imerso apenas em filmes. As imagens que surgem correspondem aos filmes a que assistiu durante este retiro e a narração, ao sentimento de impotência a que este retiro remeteu o realizador. O cinema salva, mas ao mesmo tempo regala apenas imagens que oferecem consolo (e nada mais) perante o nosso desespero. Se perguntássemos a nós próprios, durante esta pandemia, qual seria a nossa versão de ‘Não pense que vou gritar’, com que imagens iríamos contar a história deste período decisivo?
Será a figura decisiva deste período a do espectador? Fomos nós apenas espectadores durante este tempo? Sentados numa cadeira, absorvendo a luz de ecrãs. As imagens a sucederem umas às outras, mas nós fixos, imóveis, existindo apenas como expectadores. Observando os gestos do cinema (abraços, beijos, multidões; os dramas do quotidiano) como registos etnográficos de algo perdido ou temporariamente inacessível. Durante a pandemia existimos como sujeitos cinematográficos e a ficção existiu como registo, prova, da nossa humanidade.
Outro filme que podemos referir, como descrevendo de forma precisa a presente situação, é o clássico de Alfred Hitchcock, Rear Window (Janela Indiscreta; 1954) que descreve um herói que, tal como nós, se encontra paralisado, numa posição de espectador, de observador.
Através da janela indiscreta somos James Stewart; limitando-se a reconhecer os humanos através das suas janelas. Os vizinhos. Num certo dia vi duas crianças a jogar à bola no parque do prédio. À janela de outro prédio conseguia ver outro par de crianças, a observar atentamente o modo como os sortudos corriam e chutavam a bola. eles estavam parados e a janela fechada.
As horas passadas a olhar pela janela, como se existisse um ecrã entre os nossos olhos e o conteúdo perceptivo que se encontra ‘para lá’ da janela. A beber chá; a fumar; a ouvir música. A olhar para a mesma rua vazia, por vezes decorada com a passagem de alguns vestígios de vida humana, aguçavam o apetite voyeurista do nosso olhar cinematográfico.
Como só uma imagem domina tudo, não consigo concentrar-me nos assuntos dos livros, hoje roubei esta citação do Chesterton – subvertendo o seu contexto original-:
"É que, se há um muro, entre nós e o mundo, pouca diferença faz considerar-se trancado do lado de dentro ou do lado de fora. O que nós queremos não é A UNIVERSALIDADE que está para além de todos os sentimentos normais; queremos a universalidade que está dentro de todos os sentimentos normais.".