Fronteiras Digitais: 25 anos após a Declaração de Independência do Ciberespaço



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A internet surge-nos como uma dimensão totalizante nas nossas vidas, ao mesmo tempo que se ramifica e complexifica, nas suas estranhas comunidades – cada qual com o seu próprio léxico e sistema de valores – e nos seus cantos ‘secretos’, obscuros.

O que poderia manifestar-se como uma arma poderosa de partilha de conhecimento e, acima de tudo, enquanto expressão política de um caderno de encargos Universal, parece, no entanto, revelar uma incapacidade de comunicação entre mundividências e vontades radicalmente diferentes. A pulverização das comunidades, o fechamento e um regresso aos ‘arcaicos’ fóruns anónimos parece ser, cada vez mais, uma tendência no espaço virtual e o remédio temporário para a loucura da politização opinativa das redes sociais mainstream. Estas noções de comunidade à escala global incluem, em si, os dilemas da liberdade individual e pertença a um colectivo.       

De tal modo que parece não corresponder à ideia de uma comunidade global, mas à universalização do particular: as idiossincrasias, vícios, perversões, desejos e aspirações da totalidade dos Humanos. Toda esta informação é traduzível numa base de dados, pronta a modificar a nossa identidade.

A internet surge-nos, portanto, como um monstro que terá de ser amordaçado e legislado para que não colapse, ou coloque um término ao frágil tecido que mantém suspenso o velho mundo (nos seus moldes tradicionais de democracia, liberdade e, não menos importante para os governos, a adesão das pessoas à cultura e sistema de valores do ‘mundo real’).

 Nesse sentido urge reflectir sobre a Declaração de Independência do Ciberespaço, carta escrita por John Perry Barlow: 25 anos findados, de que modo esta carta reflecte, na contemporaneidade, o sonho do ciberespaço? Tanto no que tem de idílico e ingénuo, como nos problemas que antecipa e no jogo de forças que mantém vivo o legado de John Barlow, seja de modo consciente ou inconsciente. Esta famosa carta começa com a seguinte declaração de intenções:

“Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone. You are not welcome among us. You have no sovereignty where we gather”.

Ela estabelece uma distinção interessante entre o domínio imaterial do ciberespaço (onde, supostamente, residiria o colectivo universal das mentes), radicalmente demarcado do domínio da realidade física (domínio das restrições, governos, fronteiras, sistemas legais e sociais que constrangem o individuo). Esta concepção, prévia ao Facebook, LinkedIn e afins, inspirava-se nas primitivas comunidades virtuais (nas quais podíamos existir apenas enquanto ‘avatar ficcional’, sem qualquer relação às nossas parecenças e limitações físicas), como era exemplo a comunidade The Well (The Whole Earth ‘Lectronic Link, criada em 1985).

Barlow não conseguiria prever um monstro como o Facebook, capaz de privatizar o espaço global e expulsar da Polis Digital qualquer cidadão. Não conseguiria também prever o esforço que alguns estados pudessem fazer para silenciar a internet, para impedir a sua potência enquanto veículo da notícia, em casos de insurgência popular. Como no caso da India, aquando dos protestos dos agricultores, tendo este ano, movido acções para a censura e bloqueio da internet em regiões perto de Nova Delhi. A própria plataforma do Twitter acabou por ceder a pressões por parte do primeiro-ministro Narendra Modi.

Outra vítima deste sonho foi Aaron Swartz (criador do formato de web feed RSS e co-fundador do fórum Reddit), que colocou termo à sua própria vida em 2013, devido à perseguição legal de que foi alvo, pelo acto de ‘desobediência civil’, ao ter disponibilizado indevidamente milhões de artigos científicos do arquivo académico online JSTOR de forma gratuita.  No seu manifesto, Guerilla Open Access Manifesto, estabelece uma conexão entre ‘informação’ e ‘poder’ e visava lutar contra o fecho do acesso a estudos (financiados com fundos públicos). Para Aaron Swartz, transformar toda a informação científica num bem comum não era um crime, mas sim serviço público e o cumprimento dos desígnios da internet.

Ainda que estas novas formulações de intenção e acção políticas, no espaço digital, esbarrem na dimensão física – do Poder Real – e, por vezes, sejam reduzidas a meras ‘vitórias morais’, expressam parte do sentimento original da carta: o anseio por uma coabitação das liberdades que não seja meramente formal; um desejo de descentralização e autonomia dos indivíduos em relação aos governos e instituições (como no caso das comunidades que implicam o seu futuro na tecnologia BlockChain e investem nas diversas Altcoins existentes e, diariamente, especulam acerca dos seus possíveis usos numa sociedade futura), ou o caso dos subgrupos de investimento e literacia financeira do Reddit (r/wallstreetbets), que não só procuram uma partilha exaustiva de informação, de modo a desmistificar a expertise dos mercados  enquanto um conhecimento que não pertença apenas a um pequeno grupo dotado de Capital e informação privilegiada, ao mesmo tempo que procuram elaborar investidas colectivas, organizadas, de modo a afetar o mercado (algo que seria impensável).

Como será travada esta batalha entre comunidades, dotadas de vontade própria e munidas de uma arma poderosa, e as instituições e poderes tradicionais? Poderemos nós esperar por uma digitalização da política, que nos coloque no caminho de um diálogo saudável entre estas duas dimensões (a ‘mente colectiva’ e o físico) e a criação de algo semelhante a uma democracia directa? Ou, por outro lado, a política, para que as sociedades não colapsem, terá de impor as suas determinações no digital?

O futuro da internet poderá trazer algo diferente da ‘primeira grande experiência de anarquia’ da qual tivemos o prazer de fazer parte; novas fronteiras e limites. Mas o futuro, como diziam os gregos, está nas nossas costas. Futuro não corresponde à sua realização, mas este modo peculiar do Humano, no presente, de antecipar, desejar e ansiar pelo que está por vir.

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Fábio Alves
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