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O 25 de abril de 1974 trouxe consigo uma verdadeira vaga democrática que chegou a todo o território. Não me refiro apenas à instituição de eleições livres para a Assembleia da República, mas da igualmente importante criação de um poder local democrático, através da eleição direta das câmaras, assembleias municipais e assembleias de freguesias pela população.
Pela sua natureza, as autarquias são o ponto de contacto imediato e mais próximo que a população tem não só com o Estado, mas também com a democracia representativa. As autarquias desempenham, como tal, um papel determinante na qualificação do nosso regime democrático, mas também no reforço da confiança entre os cidadãos e as instituições.
O trabalho realizado pelas autarquias foi e continua a ser determinante para democratizar o investimento público, e garantir o desenvolvimento dos territórios. A transformação qualitativa que o nosso país observou nas últimas décadas em matéria de progresso social e económico muito se deveu ao empenho e trabalho dos eleitos locais que, através de parcerias de confiança com o Estado central, souberam, na sua grande maioria, aproveitar as oportunidades oferecidas pela UE, nomeadamente através de excelentes taxas de execução de fundos europeus de investimento. Em 47 anos, muita coisa mudou.
As eleições autárquicas configuram, portanto, um verdadeiro e vibrante encontro entre a democracia representativa e a cidadania. Estas representam, nos 308 concelhos portugueses, a boa (ou má) vitalidade do sistema democrático, assistindo-se à mobilização de centenas, por vezes, milhares de cidadãos, em torno dos mais diversos projetos políticos no intuito de resolver problemas e promover o desenvolvimento da sua freguesia e do seu concelho.
Os próximos autarcas eleitos terão pela frente um conjunto variado de desafios, dos quais se destacam a execução do plano de recuperação e do próximo quadro de fundos europeus (2021-2027), bem como gerir um conjunto novo de competências que reforçará o papel que os municípios têm na vida de todos nós. O recente pacote de descentralização de competências aprovado pelo Governo é um claro voto de confiança no poder local, que poderá ver-se assim menos dependente do poder central para executar um determinado número de tarefas.
Se esta municipalização de competências é um ponto de partida que merece ser louvado, ela não deixa de levantar certos riscos e preocupações genuínas. A primeira prende-se com o possível perigo de fragmentação do território e aprofundamento das desigualdades, nomeadamente, nas regiões do interior que precisam desesperadamente de ganhar escala, construindo sinergias com outros municípios, trabalhando mais e melhor em rede, aproveitando, para tal, as já criadas CIM. A municipalização de competências, pela natureza dos concelhos de baixa densidade, pela limitação de recursos, sejam eles financeiros ou humanos, poderá constituir um motor de divergência acelerada entre o interior e litoral caso não existam plataformas supramunicipais de coordenação de políticas. Os vários exemplos europeus confirmam, aliás, esta premissa: o reforço das entidades supramunicipais tem sido uma realidade e uma necessidade, mesmo nos países mais desenvolvidos. Só conseguiremos responder a desafios comuns quando formos efetivamente capazes de trabalhar em rede e articulando políticas. Continuo, lamentavelmente, a ver demasiadas “guerras de capelas” que só prejudicam os interesses dos cidadãos.
Mas corremos também outro risco, quiçá, o mais preocupante de todos e que se prende com a excessiva concentração de poderes na figura do Presidente de Câmara. A municipalização de competências poderá levantar, a médio e a longo prazo, a questão legítima sobre a forma como é exercido o poder nas autarquias. Já hoje, o Presidente da Câmara pode chamar a si um conjunto alargado de competências centrais esvaziando, em certos casos, as funções da sua própria equipa executiva. O reforço desses poderes, em resultado da transferência de competências, merece uma séria reflexão, sob pena de fomentarmos, particularmente nos concelhos mais pequenos, figuras quasi-absolutistas cujo excessivo poder discricionário poderá colocar em causa a própria saúde democrática do território, transformando-a, progressivamente, numa espécie de feudo autocrático, governado por um único Senhor. É por isso essencial reforçar os mecanismos de controle do poder local, num primeiro momento, limitando a excessiva concentração de poderes no Presidente da Câmara e lançando, em paralelo, uma reforma profunda da estrutura democrática autárquica, reforçando as competências e poderes das Assembleias Municipais, no importante exercício de controlo e equilíbrio do poder que estas desempenham.
Estas são algumas pistas para podermos construir um poder autárquico mais democrático, transparente e próximo dos cidadãos.