A política contemporânea está contaminada por uma lógica de seita e de fanatismo, agravada pelo agigantar dos extremos.
Esse fenómeno aditivado pelo alarme constante e urgência diária tem nas redes sociais o combustível que incendeia permanentemente o debate público, imprimindo nos púlpitos digitais a amplificação de toda a qualidade de dogmas e punindo severamente as dúvidas.
Quantas vezes lemos nas redes comentários de crentes fanáticos, que olham o mundo como um vasto território de infiéis, convencidos de que vivem cercados apenas pelos puros e pelos salvos. E veem no seu líder o sumo sacerdote que marcha em procissão digital, pronto a denunciar blasfémias e a excomungar quem não reza pela cartilha. Discutir, isso é coisa de vendidos, centristas, moderados ou de outro género de hereges.
A democracia, esse regime feito para gente sensata, mediana e racional, parece uma casa de repouso cercada por clérigos furiosos. O fanático precisa de inimigos como o monge precisa de pecadores. A dúvida passa a ser uma heresia e a dissidência, uma traição imperdoável. É o sectarismo a infiltrar-se numa democracia que vive precisamente da dúvida, do debate e da pluralidade.
Tal como numa seita religiosa, os extremos políticos vivem da promessa de salvação. À esquerda radical, essa promessa veste-se de um amanhã radioso, “os amanhãs que cantam”, sem exploração ou desigualdade, do outro lado, à direita radical, fantasia-se com um regresso a uma idade dourada de ordem e pureza perdida (que nunca existiu).
Ambas constroem um inimigo externo ou interno a quem atribuem todos os males: o “capitalista explorador”, o “imigrante invasor”, o “neoliberal de direita” ou o “globalista corrosivo”. Como nas seitas, não há complexidade, só dogma.
A adesão a este fanatismo político responde a uma necessidade humana biológica de certezas absolutas em tempos incertos. Tal como um crente encontra segurança na autoridade do seu pastor espiritual, também o militante sectário encontra sossego ao renunciar ao pensamento racional.
Questionar é um fardo, mas obedecer é libertador, porque existe o sentimento pertença a algo. Daí o fervor quase litúrgico com que se repetem “slogans”, marcham em manifestações coreografadas ou inundam-se redes com hashtags e vídeos como se fossem rezas em coro.
Esta deriva é perigosa porque a democracia não é nem pode ser uma religião, muito menos deve viver de dogmas ou profetas. A democracia é uma engrenagem intrincada e uma engenharia imperfeita, feita de compromissos, negociações e dúvidas.
Quando a política se converte em seita, fecha-se ao diálogo, e onde não há diálogo instala-se a violência verbal, simbólica e até mesmo física. Os extremos, no seu fanatismo, repetem a cada passo a liturgia da intolerância: já não se trata de convencer, mas de converter e quem não se converte, que se prepare para o silêncio dos pecadores.
O desafio da nossa sociedade é resgatar a política e o espaço público desse sequestro sectário, devolvendo-lhe o carácter humano, falível e plural. Só aceitando a dúvida como motor e as múltiplas diferenças como condição, é possível restituir à democracia o que sempre foi: o contrário de uma seita.
A política-seita que exige “cruzados de computador” e “CapsLock” não se interessa por soluções, só pelo sacrifício ritual dos “bodes expiatórios” entre memes e provocações mediáticas.
Atirando a democracia para o balcão tasqueiro e mal frequentado, do pensamento de rebanho e tornando verdade o velho sonho lusitano sebastianista de se ser, ao mesmo tempo, cavaleiro e mártir.
Cabe a todos agarrar nas nossas revoltas interiores e sociais e canalizá-las para respostas sérias que podem beneficiar a sociedade e não para quem só se preparou para o vídeo, para o mantra instantâneo ou para o click batting do momento.
Luís Nunes dos Santos

