Júlio Isidro dispensa apresentações. É um tesouro da televisão portuguesa, um nome que ressoa com memórias afectivas para várias gerações. Pouco depois de celebrar o seu 80º aniversário, surge esta oportunidade de revisitar a carreira de um homem cuja trajectória, ao longo de mais de seis décadas, moldou o panorama do entretenimento em Portugal.
Esta reflexão, que chega um pouco após essa data especial, não se limita a celebrar os feitos notáveis de Isidro; celebra também o comunicador que continua a inspirar e a emocionar tantos portugueses, de cá e de além-fronteiras.
Foi nos programas de Júlio Isidro que Portugal se encantou com talentos únicos, figuras que marcaram a cultura nacional e que, sob o seu olhar atento, ganharam voz. António Variações, cuja última aparição pública na televisão aconteceu num dos seus estúdios, pouco antes do seu falecimento em 1984, é um desses nomes. O Chefe Silva, com a sua simplicidade e mestria culinária, encontrou igualmente um lugar de destaque, sobretudo em “A Festa é Festa”, um marco na história da televisão portuguesa. Mas o alcance de Isidro não se ficou por aqui. Artistas como Dulce Pontes, Fernando Pereira, Rita Guerra, os Irmãos Verdades, Clã, Anabela, Pedro Abrunhosa, Lúcia Moniz e Sérgio Godinho, entre outros, devem também a ele o espaço que tiveram para revelar o seu génio ao país.
Esta crónica é uma viagem nostálgica e inspiradora pelo legado de alguém que revolucionou a forma como Portugal se vê no pequeno ecrã. Desde os primórdios do “Passeio dos Alegres” até aos momentos de pura magia com o Chefe Silva, Isidro partilha histórias que definiram uma era. Quando questionado sobre que memória escolheria para assinalar os seus 80 anos, ele aponta um momento solene: “A transmissão directa que fiz a partir da Assembleia Geral das Nações Unidas, quando o mundo inteiro aplaudiu de pé o Marechal Costa Gomes, Presidente da República. Era o reconhecimento de um país em liberdade pelo mundo.” A resposta ecoa o peso de uma carreira que não se limitou ao entretenimento, mas que acompanhou instantes históricos.
A parceria com o Chefe Silva é outro capítulo essencial. Sobre a génese dessa colaboração em “A Festa é Festa”, Isidro explica: “O Chefe já colaborava comigo na rádio, com uma rubrica na Grafonola Ideal. Chegou a participar na Febre de Sábado de Manhã e, posteriormente, no Passeio dos Alegres, mantendo-se em permanência no Festa. A sua presença foi um sucesso incontestável.” Nascido em Caldelas a 29 de Março de 1934, o Chefe Silva carregava a alma da sua terra em cada gesto. Perdeu o pai cedo, enfrentou uma infância dura e trabalhou como ajudante de ferreiro antes de se tornar um ícone. A família tentou encaminhá-lo para o seminário, mas ele resistiu: “Eu gosto é de mulheres, a vida de padre não é para mim!”, declarou com um brilho genuíno. Isidro viu nele qualidades raras: “A serenidade, a dedicação ao público, a humildade conquistaram o coração dos portugueses. Era um homem do povo, amante da sua terra.” E assim, com essa paixão por Caldelas e pela sua gente, o Chefe tornou-se próximo das famílias, um verdadeiro embaixador da simplicidade.
Já António Variações, outro filho de Caldelas, cruzou-se com Isidro de forma igualmente marcante. “O António era único, tinha uma autenticidade que não se fabricava,” recorda ele. “A primeira vez que o vi, percebi logo que estava diante de alguém especial.” Antes da fama, Variações caminhava cabisbaixo pelas ruas de Caldelas, de mãos nos bolsos e olhar baixo, a caminho da quinquilharia onde trabalhava. “No ‘Passeio dos Alegres’ demos-lhe espaço para ser ele próprio, sem artifícios. A sua última aparição foi particularmente comovente — ninguém imaginava que seria a derradeira.” Apesar de ter partido cedo, o legado de Variações perdura, um testemunho da visão de Isidro para reconhecer o extraordinário.
A versatilidade de Júlio Isidro brilha também em “Esta Semana”, onde revelou uma faceta mais jornalística. “As entrevistas tornam-se desafiantes quando o entrevistado não colabora,” confessou. “Harrison Ford tive de o conduzir com firmeza, enquanto Dustin Hoffman surpreendeu pela cumplicidade imediata.” Já o “Passeio dos Alegres”, quase um ritual familiar aos domingos, leva-o a reflectir sobre a evolução da televisão: “A televisão familiar está a desaparecer… mas ainda pode ser resgatada. As novas tecnologias enclausuram o indivíduo numa redoma de anti-comunicação.”
Nos bastidores de “A Festa é Festa”, Isidro equilibrava entretenimento e conteúdo com mestria. “Diversificando os temas para agradar a todos, com segmentos curtos e cativantes,” explica. “O segredo era unir, não fragmentar.” Para ele, o maior contributo de programas como “A Festa é Nossa” ou “Passeio dos Alegres” foi provar que “o entretenimento pode ser inteligente e unificador, sem polémicas baratas.” E num registo mais leve, ao recordar “Feitos ao Bife”, sorri: “Confesso o meu ‘pecado original’: até hoje não sei cozinhar. Evitava tocar nos ingredientes para não estragar a receita!”
Entre os formatos que criou, destaca alguns como pioneiros: “A Febre de Sábado de Manhã, o Passeio, o Festa e, recentemente, o Inesquecível na RTP Memória trouxeram algo novo à comunicação.” O legado da sua geração, partilhado com figuras como o Chefe Silva, define-se assim: “Um legado humanista, focado na simplicidade. Os portugueses não se revêem na ostentação forçada que alguns media propagam.”
Por fim, Júlio Isidro deixa uma mensagem aos portugueses, especialmente aos que, vivendo no estrangeiro, mantêm viva a ligação ao país: “Assistam à televisão com olhos críticos. Não se deixem adormecer por conteúdos vazios, nem alimentem a agressividade que alguns programas promovem. A televisão deve servir o público, não o manipular.” São palavras que ecoam os seus 80 anos de vida e seis décadas de carreira — um apelo à autenticidade que ele sempre defendeu, seja ao dar voz ao Chefe Silva e ao seu amor por Caldelas, seja ao iluminar o génio melancólico de Variações.