A vida nos bairros pobres das grandes cidades, em que há “alguma crueldade, alguma violência, violência latente, mas também alguma ternura”, é o tema central peça “Leões”, a estrear na quinta-feira no Teatro da Politécnica, em Lisboa.
A definição é de António Simão, encenador de “Leões”, a segunda peça da trilogia do ator, encenador e dramaturgo catalão Pau Miró (1974), que os Artistas Unidos põem em cena sucedendo a “Girafas”, estreada em março último.
Um autor “muito interessante, que escreve de uma maneira aparentemente simples, aparentemente banal” com “alguns arquétipos e clichés”, mas que “através de alguns detalhes, de umas amplificações ou de uns afastamentos, começa a entrar numa outra zona não realista”, frisou António Simão à Lusa, no final de um ensaio de imprensa.
Com diálogos aparentemente banais em que as personagens andam pela rua a explicar a sua vida e o que andam ali a fazer à primeira pessoa que lhes aparece, a ação de “Leões” situa-se “nos finais dos anos 1980/1990”, no “boom do capitalismo, da globalização”.
Uma realidade conhecida do dramaturgo nascido em Barcelona e criado no bairro El Raval, “um bairro com muitas etnias, diferentes culturas, grupos ou guetos, onde as pessoas não comunicam umas com as outras”. Como se vivessem “em reservas”, acrescentou António Simão, citando o dramaturgo.
Rapaz, filha, pai, mãe e inspetor são as personagens de “Leões”, cuja cena se fixa numa antiga lavandaria de bairro, das “que já quase não existem”, onde de um lado estão as máquinas de lavar e suportes com roupa pendurada dentro de sacos de plástico.
Do outro lado do palco está um pequeno espaço onde se vislumbra uma cozinha, casa de jantar e casa de banho, onde vive a família proprietária da lavandaria.
Uma oficina onde se consertam os motores das máquinas e ferramentas faz também parte da cenografia, onde, na parte superior direita se veem umas luzes a piscar remetendo para um cenário de discoteca.
A peça começa com a filha a ler, sentada numa cadeira de rodas e com a entrada de um rapaz que pretende pôr a lavar a camisa manchada de sangue que traz vestida.
À medida que a ação se desenrola, pai e mãe falam de um filho que desapareceu - e que a filha admite perante o rapaz - sem que se saiba porquê.
Enquanto a ação de “Girafas” se situa no tempo da ditadura franquista, “Leões” passa-se nos tempos do capitalismo, e “Búfalos”, que encerrará a trilogia”, no “pós-capitalismo, na terra devastada”, sublinhou António Simão.
“Girafas” reporta-se ao tempo dos avós, "Leões" ao dos “dos nossos pais”, “ou nós, adultos agora com 50 anos que cresceram no pós-ditadura”.
As gerações mais novas (filha e rapaz) serão os “búfalos”, acrescentou o encenador, explicando as analogias e os paralelismos da trilogia com a fábula.
"Leões" expõe os nascidos em ditadura mas que cresceram depois dela, “numa fase charneira e de transição", entre "este feroz capitalismo, uma feroz globalização, a feroz ausência de referências, de pontos de apoio, da massificação da cultura, da massificação dos media”. "A geração que esteve no meio da ditadura, da opressão” e no “auge e no pico do capitalismo”, frisou António Simão.
O encenador realçou ainda "um mecanismo engraçado” na escrita de Pau Miró, que remete para Harold Pinter: “O facto de haver sempre alguma coisa ocultada, algo que não é dito (…), a que nunca chegamos embora o vamos reconhecendo com o desenrolar da narrativa e que sabemos que é valioso”.
"Um teatro subtil e violento, volátil e comprometido, real e fantasioso”, concluiu António Simão sobre Pau Miró.
Em cena até 04 de maio, com récitas de terça-feira a quinta, às 19:00, à sexta, às 21:00, e ao sábado, às 16:00 e às 21:00, “Leões” tem interpretação de Andreia Bento, Iris Runa, Pedro Caeiro, Pedro Carraca e Vicente Wallenstein.
A tradução da trilogia é de Joana Frazão e está publicada na coleção Livrinhos de Teatro.
Os figurinos são de Rita Lopes Alves e a assistência de cenografia de Francisco Silva. Na luz está Pedro Domingos, no som, André Pires, e na assistência de encenação, Inês Pereira.
Na próxima sexta-feira, 12 de abril, às 18:00, haverá uma conversa com Andreia Bento, coordenador da coleção Livrinhos de Teatro, Xavier Minguell, professor de catalão e coordenador do departamento de Estudos Catalães da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e Pau Miró.
Nuno Gonçalo Rodrigues, que encenou “ Girafas”, António Simão e Pedro Carraca, que dirigirá “Búfalos”, participam também na conversa.
A iniciativa antecipa a celebração do dia de Sant Jordi (Dia de S. Jorge, 23 de abril), Dia do Livro e da Rosa nos países catalães, em que os Artistas Unidos, o Institut Ramon Llull e os Estudos Catalães da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa convidam o autor da trilogia para falar da sua obra e da dramaturgia catalã.
No final da representação, os espectadores poderão ainda conversar com a equipa artística e o dramaturgo.