Cinquenta anos depois, é inevitável olharmos para o cerco ao Palácio de Cristal como uma das noites mais sombrias da nossa jovem democracia.
Naquele dia, entre 25 e 26 de janeiro de 1975, a liberdade foi sitiada. Foi um ataque não apenas a um espaço físico, mas ao espírito democrático que emergira do 25 de Abril.
No passado domingo, durante a evocação deste evento, o gesto do presidente da Câmara Municipal do Porto destacou-se. O pedido de desculpa, feito em nome da cidade, não apenas reconheceu o peso deste acontecimento, mas assumiu a responsabilidade coletiva de revisitar, com humildade, os erros do passado. Este gesto simples, mas poderoso, foi um tributo à memória e uma reafirmação do compromisso com os valores democráticos.
A noite do cerco, com a sua violência e intimidação, não foi apenas um episódio isolado. Foi o reflexo de um período de instabilidade e polarização, onde o medo e o extremismo ameaçaram sufocar o pluralismo. Contudo, naquele momento de escuridão, a democracia, embora atacada, prevaleceu. Resistiu porque é resiliente, como a própria vontade de um povo que, depois de décadas de opressão, soube reivindicar o direito de escolher o seu futuro.
Mas os perigos à liberdade não são novidade. Recordei, a propósito, um paralelo histórico. Há 80 anos, na Europa central, em países como a Áustria, assistimos a perseguições sistemáticas que silenciaram comunidades inteiras – judeus, maçons, dissidentes. A liberdade foi esmagada pelo medo, pela intolerância e pela manipulação. A História ensina-nos que, sempre que baixamos a guarda, o autoritarismo encontra forma de regressar.
Este é o verdadeiro desafio da democracia: não é um bem adquirido, mas uma construção contínua, que exige vigilância, esforço e coragem. Quando deixamos de cuidar dela, como quem negligencia uma planta delicada, o terreno fértil onde germinam a liberdade e a igualdade pode facilmente ser ocupado pelo medo e pela opressão.
O pedido de desculpa pelo cerco ao Palácio de Cristal é mais do que um gesto simbólico. É um aviso. É um prenúncio daquilo que acontece quando esquecemos que o diálogo e o respeito pelas diferenças são o coração da democracia. Enfrentar os erros do passado é um ato de coragem que fortalece o presente e protege o futuro.
Que a memória deste episódio nos alerte para os caminhos perigosos que podem levar à erosão dos valores conquistados. Que nunca nos esqueçamos de que o medo é a antítese da liberdade. E que, juntos, continuemos a lutar pelos ideais de Abril, construindo uma democracia que honre aqueles que, tantas vezes, a defenderam ao custo das suas vidas.