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Lisboa, 22 set 2024 (Lusa) - Trinta anos após o genocídio tutsi, um dos piores massacres da Historia, que terminou com perto de um milhão de mortos, chega a Portugal o poderoso testemunho de Scholastique Mukasonga, autora inédita em Portugal, cuja família foi dizimada.

“Inyenzi ou as baratas” é o título deste livro, que foi a estreia da autora na Letras, em 2006, e que marca também agora a estreia da escritora no mercado literário português.

Publicada na coleção Contemporânea dos Livros do Brasil, com tradução de Maria de Fátima Carmo, esta obra escrita a partir de França, depois de décadas de exílio, pavor e humilhação, constitui uma memória pessoal, mas também um “documento duro e enternecedor” e “uma carta de amor repleta de feridas impossíveis de sarar”, descreve a editora.

“Na noite de 6 de abril de 1994, Deus não estava no Ruanda”, desabafa Scholastique Mukasonga, numa referência ao dia em que o presidente ruandês foi assassinado, abrindo caminho, a partir daí, a uma escalada de violência praticada pela maioria Hutu contra a minoria Tutsi, que resultou num massacre em massa, que ficou conhecido como o Genocídio do Ruanda ou o Genocídio Tutsi.

Calcula-se que tenham morrido entre 800 mil a um milhão de pessoas durante este período de pouco mais de três meses. Os restos mortais de todos eles nunca seriam encontrados.

Scholastique Mukasonga, que na altura vivia em França, perdeu toda a família e é a ela que dedica este livro, assim como a “todos os que pereceram no genocídio de Nyamata” (distrito de Ruanda).

“Fecho os olhos, será mais uma noite sem dormir. Tenho tantos mortos a velar”, escreve nas páginas iniciais de “Inyenzi ou as baratas”.

Apesar de se ter livrado do grande massacre de 1994, Scholastique Mukasonga viveu uma infância já deveras perturbada pela instabilidade social do seu país, onde a violência de Hútus sobre Tútsis era constante.

Numa nota introdutória, a autora nomeia todos os familiares que foram vitimas do massacre, nomeadamente os pais, os irmãos e os sobrinhos, mas evoca também “todos aqueles que, mais numerosos, não o são [nomeados], aos raros que se salvaram e sentem a dor de ter sobrevivido”.

Scholastique Mukasonga é uma dessas sobreviventes que vive com a dor, e que conta, logo no início do livro, como “todas as noites” o seu sono é “trespassado pelo mesmo pesadelo”, o de ser perseguida por pessoas com machetes e, entre gritos e vítimas que vão ficando para trás, ela é a única ainda a correr, com medo de “sentir o frio do gume no pescoço”.

Estes pesadelos assolam-na quando ela vive em França, numa casa silenciosa, com os filhos a dormir tranquilamente no quarto deles, mas, ainda assim, atormentada por um passado de que se manteve a salvo, mas que lhe levou toda a família.

Por isso chora, embora não queira chorar, enquanto copia e torna a copiar os nomes de todos os familiares mortos num caderno, os muitos mortos que tem de velar e que, mesmo que os quisesse visitar, não conseguiria encontrar.

Escreve: “Onde estão agora? Na cripta memorial da igreja de Nyamata, crânios anónimos entre tantas ossadas? No mato, debaixo de espinheiros, numa vala ainda não descoberta? […] quero provar a mim mesma que existiram deveras, pronuncio os seus nomes, um a um, na noite silenciosa. A cada nome tenho de atribuir um rosto, fazer corresponder uma recordação”.

Dividindo os capítulos do livro por datas, Scholastique Mukasonga conta a sua história, recuando a 1956, data do seu nascimento, na província de Guicongoro, no sudoeste do Ruanda, na orla da floresta de Nyungwe.

Através desta história, fica-se a saber que quando uma mulher tutsi tomava conhecimento de que estava para ser mãe, a angústia arrasava-lhe a felicidade: sabia que, pelo formato do seu nariz, o aspeto do seu cabelo, o seu local de nascimento, aquele bebé estaria destinado a tornar-se, aos olhos do seu país, um Inyenzi – uma barata.

Vem daqui o título do livro, e foi esta a designação dada aos tútsis do Ruanda durante décadas, que serviu como argumento de que aquele povo mais não era do que um inseto desprezível, e que abriu portas a que a violência ganhasse gradualmente rédea solta, até ao genocídio de 1994.

Scholastique Mukasonga tinha três anos quando aconteceram os primeiros massacres de tutsis, e em 1960 a sua família foi deportada e fixada, juntamente com muitas outras, em Nyamata.

Apesar de existir uma quota de apenas dez por cento para tútsis no ensino secundário, Mukasonga frequentou o liceu de Kigali e a escola de assistentes sociais em Butare.

Depois de, em 1973, os tutsis terem sido banidos das escolas, fugiu para o Burundi, onde completou os estudos e trabalhou na UNICEF.

Em 1992, estabeleceu-se em França e, em 2006, publicou este seu primeiro livro, impelida a salvar do apagamento a história daqueles que já não a podem contar, e a testemunhar como foi crescer constantemente entre o medo e o carinho extremos, como confessa.

Desde então, lançou uma dezena de títulos, vários deles premiados, adaptados ao cinema e traduzidos para cerca de vinte línguas, tendo sido já apontada como uma possível primeira mulher negra africana a ganhar o Prémio Nobel da Literatura.

Distinguida também com o Prémio Simone de Beauvoir para a Liberdade das Mulheres pelo conjunto da sua obra, Scholastique Mukasonga vai estar em Portugal, para participar no FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, subordinado ao tema “Inquietação”, numa sessão agendada para dia 19 de outubro.

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