"O que tens?
Uma sensação de vazio neste despertar noturno repentino apoderou-se do meu ser.
Incomoda-me.
Não estou bem, não sei o que pensar, não sei o que quero...
Por favor, desaparece!
Um aperto no peito, suspiros profundos, um nó no estômago, um arrepiar do ventre...
E a melancolia invade o meu coração.
Observo a escuridão do meu quarto e a tranquilidade destes momentos dá-me alento.
E o meu pensamento vagueia...
Penso naqueles que já partiram. Um pai, a minha mãe, um irmão, o meu marido, uma sobrinha, a minha melhor amiga.
Penso nos que fizeram parte da minha vida durante o tempo que estava destinado, isto se acreditarmos no destino, com um princípio, meio e fim.
Serviram o seu propósito. E eu servi o deles. Daí as nossas vidas se terem cruzado, e algo ficou marcado em cada um de nós.
É assim que crescemos, porque as experiências que vivemos ajudam a desenvolver as nossas capacidades de entendimento sobre o mundo que nos rodeia.
E pelo meio, as alegrias que nos invadem, o sofrimento que nos acompanha, serão sempre o companheiro interminável dessa existência.
E nesta noite, algo me incomodou e perturbou intimamente até o coração sentir um pulsar mais rápido e ansioso e a melancolia se apossar do meu espírito.
E ao lembrar-me daqueles rostos que me deram vida ou dela fizeram parte, e que enriqueceram os meus dias, uma suavidade aligeira o meu semblante e todo o meu ser. Continuam a ser a minha força invisível, pois acredito que as suas memórias são o meu pilar.
Tranquilizo-me e sorrio. Não estou só porque a minha vontade faz de mim um ser mais forte, na crença de que, das raízes do passado, construímos o presente para alicerçarmos o futuro.
E o meu dia de ser feliz, mais feliz, chegará.
Volto novamente para o vale dos lençóis, repouso a cabeça na almofada, e aconchego-me para permitir que o sono recupere o seu tempo e me ajude a revigorar as energias para o dia seguinte.”
Quantos de nós já passámos por este momento? Quantas vezes existiram estas horas noturnas ao longo da nossa existência?
São reflexos da saudade que nos invade, inesperadamente. São emoções que podem ser despoletadas por algum fator... um olhar sobre uma peça decorativa oferecida pela nossa sobrinha, uma receita de culinária escrita pela mão da nossa mãe, um postal dedicado ao dia do pai, uma fotografia do nosso irmão, em pequeno, na praia, um romance com uma dedicatória romântica do nosso marido...
Em qualquer altura, nas horas mais inesperadas, o nosso subconsciente dá-nos um alerta emocional sobre alguém que esteve destinadamente presente na nossa vida.
Sentimos que o nosso pensamento é puxado para o passado, que por segundos paramos nesse tempo, que o presente anseia que o futuro nos imponha novamente as suas presenças.
Entes queridos que, por várias razões, nos marcaram e desejamos profundamente estejam ao nosso lado, de viva voz, para escutarmos, observarmos, abraçarmos e vivermos outra vez a sua existência.
E o nosso coração comprime-se, mais uma vez, e uma melancolia invade-nos, por que a realidade não é essa, não se pode alterar o destino, não se pode voltar atrás.
Dizem que a saudade também é um sentimento que nos alimenta a alma, que nos faz manter viva a memória dos que partiram.
A saudade daqueles que amámos, cada qual à sua maneira, pode ser muita coisa. Pode deixar-nos letárgicos, tristes, mas também sorridentes e levar-nos a criar ou a construir outros momentos em que a memória deles pode ser preservada ou que o futuro possa ser auspicioso ao cumprirmos o objetivo a que se propuseram, através do legado que nos transmitiram. Um legado de partilha de uma amizade, de uma vida de amor paternal, de afeição, de romantismo...
Alguém escreveu referindo-se à morte, "aqueles que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós", mas também podemos acrescentar que, aqueles que amamos e estão vivos nunca morrerão dentro de nós enquanto o nosso amor, enquanto a nossa amizade, enquanto a nossa vida, existir. E caso haja uma separação, seja em que circunstância for, jamais morrerão dentro do nosso coração ou pensamento. Porque jamais esquecemos quem ficou impregnado em nós, seja por que motivo for. Independentemente da dor que nos trespassa, da tristeza que nos incomoda por instantes.
Tal como a canção…
“Melodia da Saudade, de Fernando Daniel
Eu, por mais que eu tente entender
A falta que fazes aqui
Nunca vou conseguir
E nas promessas que eu faço para te lembrar
É quando eu consigo sonhar
Com tudo o que foste para mim
E é nos meus dias maus, quando já não sei quem sou
Tento gritar ao céu para que me possas ouvir
E é nos meus dias bons, que gostava de te falar
Para veres onde eu estou
Onde eu consegui chegar
É verdade, morro de saudade
De te ter aqui
É verdade, morro de saudade
Mas eu sei que estás aí a olhar por mim
Ah, ah
Vais, comigo pra todo o lado
E é no meu peito que eu te tenho levado
Eu, eu segui os teus conselhos
Lutei por aquilo que quis
E muito devo-te a ti
E é nos meus dias maus, quando já não sei quem sou
Tento gritar ao céu para que me possas ouvir
E é nos meus dias bons, que gostava de te falar
Para veres onde eu estou
Onde eu consegui chegar
É verdade, morro de saudade
De te ter aqui
É verdade, morro de saudade
Mas eu sei que estás aí
Ai se eu pudesse
Trazer-te de volta
Nem que fosse só mais uma vez
Ai se eu pudesse
Trazer-te agora
Nem que fosse só por uma hora
Nem que fosse
É verdade, morro de saudade
De te ter aqui
É verdade, morro de saudade
Mas eu sei que estás aí a olhar por mim
Ah, ah
A olhar por nós, ah, ah”
São sentimentos que se revelam também com aqueles que se encontram entre nós… Como na história que uma amiga contou… Durante vários anos, uma amizade bonita foi cultivada entre duas raparigas. Vivenciaram experiências únicas e inesquecíveis e tornaram-se quase irmãs. Um dia, por causa de uma simples mentira, algo que uma delas não tolerou por achar que não merecia, por considerar que a outra a desrespeitou, discutiram procurando esclarecer a situação. Contudo e inevitavelmente, a separação deu-se. Ambas sofreram e ainda sofrem. Uma, porque apesar de ter reconhecido o seu erro e por ter pedido perdão, ainda hoje arrepende-se por ter perdido essa amizade. A outra, renitente e apesar de ter perdoado, não conseguiu esquecer essa falha que a marcou muito profundamente, e continua longe de aceitar um possível entendimento. Cada uma com a sua razão, em determinadas alturas os seus pensamentos questionam uma pela outra, com o coração apertado, pois não se esquecerão do tempo que as entrelaçou e estreitou num elo único que as ajudou a crescer enquanto amigas, mulheres e profissionais. E, mesmo assim, sorriem interiormente ao recordarem o passado.
Tais circunstâncias conduzem-nos às mais variadas expressões que traduzem os sentimentos aqui mencionados, como por exemplo, através da poesia em que profundamente o poeta exprime a sua angustia, através da dança que exemplifica a expressão corporal, de encenações teatrais contando histórias, ou mais uma vez pela via da música.
A dor da perda é transmitida poeticamente, levando a questionarmo-nos sobre o que acontece com a afeição que temos por quem nos rodeia e que não termina.
E como diz a canção The Scientist, da banda de música, Coldplay, “… ninguém disse que seria fácil, mas também ninguém disse que seria tão difícil.”, numa composição do seu vocalista Chris Martin, que fala sobre perdão e arrependimento:
“The Scientist, Coldplay
Come up to meet you, tell you I'm sorry
You don't know how lovely you are
I had to find you, tell you I need you
And tell you I set you apart
Tell me your secrets and ask me your questions
Oh, let's go back to the start
Running in circles, coming up tails
Heads on a science apart
Nobody said it was easy
It's such a shame for us to part
Nobody said it was easy
No one ever said it would be this hard
Oh, take me back to the start
I was just guessing at numbers and figures
Pulling the puzzles apart
Questions of science, science and progress
Do not speak as loud as my heart
Tell me you love me, come back and haunt me
Oh, and I rush to the start
Running in circles, chasing our tails
Coming back as we are
Nobody said it was easy
Oh, it's such a shame for us to part
Nobody said it was easy
No one ever said it would be so hard
I'm going back to the start”
Sim, porque em todas as relações humanas, a comunicação pode falhar e levar a confitos, mas é preciso reconhecer onde se errou e procurar recuperar o equilíbrio e o bem-estar das mesmas. E se não resultar e apesar de se seguir em frente, pois a vida continua, não significa que esqueçamos quem foi importante para nós.
Como tal, devemos sorrir e sendo a vida uma constante aprendizagem, tudo o que ela nos trouxer, consequência também dos nossos atos, devemos saber vivê-la, com o pensamento naqueles que nos ajudaram a enriquecê-la.
Sim, na madrugada, o nosso despertar pode trazer-nos a saudade daqueles que partiram, por alguma razão, e que inevitavelmente podem não regressar. O que regressa são as nossas memórias dos tempos vividos em comum, na partilha do que nos ligava, na troca de experiências e de emoções, e a reflexão do que aprendemos.
Não devemos esquecer o olhar de todos eles sobre nós e o efeito que nos causou para sempre.
E, assim, podemos tranquilizarmo-nos, nesse despertar de madrugadas arrepiadas e tristes, sorrindo.