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Sejamos mais ou menos informados, mais ou menos politizados, mais liberais ou mais estatistas, há uma coisa que nos une a todos enquanto cidadãos portugueses: todos nós temos queixas da máquina burocrática do Estado.

Todos temos uma história (ou várias) de uma interação frustrante numa repartição pública. Naturalmente, não sou exceção. Eis a minha epopeia, porventura desinteressante, ainda assim paradigmática do desastre que é a organização da administração pública portuguesa.

* 20 de Novembro de 2024 *

A minha jornada começou com uma rotineira renovação do Cartão de Cidadão. Habituado que já estou à administração pública da Flandres, extremamente digital e eficiente, e sem vontade nenhuma de fazer uma hora de caminho para ir à Embaixada em Bruxelas e outra para voltar, procurei verificar se Portugal já era finalmente um país desenvolvido, onde é possível renovar documentos simples através da internet. Aparentemente, sim, era possível, pelo que pus mãos à obra.

Feliz fiquei quando consegui fazer o meu pedido de renovação do CC em menos de 5 minutos (que a partir de agora chamarei PEDIDO-1), tendo pagado sem dificuldades com um cartão virtual MBWay. Apesar de existirem evidentes oportunidades de melhoria no site, fiquei satisfeito com as facilidades permitidas pela nova plataforma gov.pt, desenvolvida pela muito badalada Agência para a Modernização Administrativa (AMA) com dinheiros do ubíquo PRR.

* 22 de Novembro de 2024 *

É processado o pagamento que fiz dois dias antes. Os cofres do Estado ganharam um pouco mais do que 20€. Como moro no estrangeiro, o prazo médio de entrega seria 30 dias, pelo que, quando regressasse das férias de Natal, era expectável ter uma carta em casa à minha espera para levantar o cartão 

* 6 de Janeiro de 2025 *

Passou mês e meio desde o PEDIDO-1. Contudo, nem carta, nem novidades, pelo que decidi contactar o serviço de apoio.

Morando no estrangeiro, fazer uma chamada para Portugal acarretava custos, pelo que, numa primeira tentativa, pedi informações através do formulário de contacto disponível no portal gov.pt. De agora em diante, designarei este como o CONTACTO-1.

* 27 de Janeiro de 2025 *

Passaram 3 semanas. Novidades sobre o PEDIDO-1: zero. Respostas ao CONTACTO-1: zero. Dada a ineficácia da abordagem, e dado que o prazo de validade do CC se começava a aproximar, liguei para a Linha de Apoio.

Atendeu-me uma simpática senhora que me disse que o pedido de renovação foi cancelado por falhas de pagamento. Ora, como o dinheiro me foi descontado, obviamente contestei. Essa mesma senhora sugeriu-me então 1) que fizesse um pedido de reembolso através do mesmo formulário de contacto que usei no dia 6 de Janeiro, e 2) que fizesse um novo pedido de renovação. O PEDIDO-1, de Novembro, estava cancelado de forma irreversível.

Naturalmente que o custo da chamada ficou por minha conta. É um valor baixo? É, mas as ineficiências do Estado já me começavam a custar dinheiro.

Seja como for, assim fiz. Comecei por fazer a reclamação, anexando comprovativo de pagamento, números de processo, timeline de ação, tudo. Quem quer que me respondesse tinha toda a informação que precisava para me reembolsar. Este foi o CONTACTO-2 .

De seguida, fiz um segundo pedido de renovação de CC - o PEDIDO-2. Desta vez, paguei com um cartão de débito. Ou seja, se o problema anterior tivesse sido por causa do cartão virtual, desta vez isso não poderia acontecer. O dinheiro foi-me debitado nesse mesmo dia. Mais 20€ seguiram para o Estado. 

* 29 de Janeiro de 2025 *

A AMA responde-me finalmente ao CONTACTO-1, dizendo que ia encaminhar o problema para o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN). 

* 30 de Janeiro de 2025 *

O IRN responde ao email da AMA dizendo não tinha dado entrada nenhum pedido de renovação. Disse ainda que "a renovação online não é do nosso âmbito, o seu e-mail vai ser reencaminhado para a AMA para ser analisado".

Ou seja, a 29 de Janeiro, a AMA diz que o problema é do IRN. Um dia depois, o IRN diz que a culpa é da AMA.

Como nesta fase eu já tinha feito um pedido de reembolso através do CONTACTO-2, optei por não responder a estes emails, pois considerei que quem quer que viesse a ler o segundo contacto já teria informação suficiente para resolver o problema.

* 9 de Fevereiro de 2025 *

Duas semanas tinham passado desde o PEDIDO-2. Ainda sem ter qualquer novidade, decidi consultar o estado do processo no portal gov.pt. Eis a mensagem que aparece: "Erro na comunicação do pagamento Visa". Mais uma vez, debitaram-me dinheiro, mas dizem que há erros de processamento.

Desta vez não liguei para o serviço de apoio. Atalhei caminho e escrevi logo o CONTACTO-3, onde 1) resumi tudo o que tinha acontecido até agora, e 2) pedi reembolso do PEDIDO-2, e 3) anexei todas as provas de pagamento necessárias.

Neste mesmo dia, faço o terceiro pedido de renovação do CC - PEDIDO-3. Desta vez, paguei com referência multibanco. Mais 20€ seguiram para as contas do Estado. Quase instantaneamente, recebi finalmente uma notificação que o pagamento fora efetuado com sucesso. 

* 18 de Fevereiro de 2025 (aproximadamente, talvez tenha sido 19 ou 20) *

Recebo uma carta a dizer que o CC está na Embaixada de Bruxelas, pronto a ser levantado. 

* 4 de Março de 2025 *

O novo CC é finalmente resgatado na Embaixada. Só faltava reaver os cerca de 41€ que o Estado Português indevidamente ainda tinha. 

* 5 de Março de 2025 (mais ou menos às 10h da manhã) *

Finalmente, alguém da AMA respondeu ao email do IRN associado ao CONTACTO-1, pedindo-me uma prova do pagamento do PEDIDO-1.

Respondi quase imediatamente, providenciando os documentos pedidos. Como todos estes contactos se estavam a tornar confusos, voltei a explicar toda esta epopeia, e solicitei que, para facilitar a comunicação, os pedidos de contacto fossem todos agrupados num.

* 5 de Março de 2025 (mais ou menos ao meio-dia) *

A mesma senhora da AMA respondeu-me que, de agora em diante, iriam juntar os vários CONTACTOS ao mesmo processo (na verdade, nesta fase, eu só tinha mencionado os CONTACTOS 1 e 2, mas mais tarde também o CONTACTO-3 viria a ser associado a este processo - talvez a única coisa eficiente em todo este processo).

Disse-me igualmente que o meu email iria ser encaminhado para o serviço de apoio técnico, que iria analisar a situação.

* 17 de Março de 2025 *

Eis que recebo o seguinte email (truncado), enviado por uma pessoa diferente da AMA:

«Após análise técnica, verificámos que tentou, por duas vezes, efetuar o pedido de renovação do Cartão de Cidadão online. (…) No entanto, os pagamentos não foram processados devido a um erro de comunicação durante os mesmos. (…) Deverá solicitar o reembolso do valor pago ao IRN».

De seguida, indicam-me uma série de informações que devia enviar ao IRN (nomeadamente o meu NIF, provas dos pagamentos, IBANs que usei, datas, etc).

Pareceu-me (ingenuamente) que finalmente tudo se encaminhava para um desfecho.

Conforme solicitado pela senhora da AMA, enviei então um extenso e detalhado email ao IRN, com todas as informações necessárias.

 

* 18 de Março de 2025 *

Logo a abrir o dia, uma senhora do IRN reencaminha o meu email… para a AMA (comigo em CC), com a seguinte mensagem «reencaminha-se mail infra para resposta ao cidadão».

Ou seja, no dia antes, a AMA pede-me que contacte o IRN para obter o reembolso. No dia seguinte, o IRN reencaminha a resolução do problema para a AMA. O mais caricato nisto é que o endereço de email para onde o IRN encaminhou o meu email foi o exato mesmo endereço que me pediu para contactar a AMA.

Enfim, decidi aguardar, para tentar perceber como iria responder a AMA (dado que era o exato endereço de email com quem estava a falar há meses).

* 16 de Abril de 2025 *

Passaram quatro semanas desde a última vez que tive notícias. Assim, de forma diplomática e (confesso) um pouco cínica, mandei um email para a AMA e para o IRN onde referi que continuava a aguardar, perguntando se o processo estava emperrado devido a algo que era preciso eu fazer.

* 22 de Abril de 2025 *

Responde-me a mesma senhora do IRN. Volta-me a perguntar as datas em que fiz os pedidos, e se o fiz via web ou via app. Respondi quase imediatamente dando essas informações.

* 23 de Abril de 2025 *

A senhora do IRN (a mesma pessoa que a 18 de Março reencaminhou os dados que lhe dei para a AMA), desta vez encaminhou-os para um departamento diferente dentro do IRN

* 12/13 de Maio de 2025 *

Três semanas volvidas, alguém desse outro departamento do IRN contacta-me. Solicita-me "cópias do pedido", que eu depreendo serem documentos que comprovem que o pedido foi feito. Há contudo um pequeno problema - o sistema não gerou qualquer tipo de documento. Mandei uma printscreen da minha área pessoal no portal gov.pt, com os números dos processos, datas, etc.

No dia seguinte, essa mesma senhora responde-me que de facto a printscreen funciona para o efeito. Finalmente é dada ordem para restituição dos montantes por mim pagos. 

* 2/3 de Junho de 2025 *

Se foi dada ordem para restituição do que paguei, então terá sido uma ordem estéril. Três semanas depois, continuava à espera. Por isso, a 2 de Junho, mandei novo reminder ao IRN.

Um dia volvido, responde-me a senhora do IRN com quem tinha falado em meados de Maio. Diz-me ela, com toda a transparência, que o pedido de reembolso foi inserido a 31 de Maio, e que aguarda processamento por parte da contabilidade. Ótimo, pensei. Por isso, aguardei.

* 1 de Julho de 2025 *

Após mais um mês de espera, finalmente é-me enfim restituído o que era meu por direito.

Esta é uma história irrelevante qb, sendo que as quantias envolvidas são relativamente irrisórias. Contudo, é também um caso onde o Estado se revelou profundamente ineficiente e onde a situação só se resolveu devido à minha proatividade, à minha insistência, e com custos-extra da minha parte. Por outras palavras, tanto eu como pelo menos 8 funcionários do Estado gastámos horas num processo administrativo que deveria ser automático, tornando um processo simples em algo que, tudo somado, custou facilmente para cima de 100€ a mais do que devia (considerando salário/hora das pessoas, chamadas internacionais, etc).

É aceitável que um simples processo administrativo demore mais de 7 (!) meses a ser resolvido? E se assim é com uma coisa tão corriqueira como renovar o Cartão de Cidadão, como é que será com assuntos realmente complexos?

Esta história ilustra a extrema necessidade que há em reformar a administração pública. Mas a sério! Digitalizar processos, eliminar ineficiências, eliminar passos intermédios inúteis. No fundo, facilitar a vida das pessoas.

Demonstra igualmente que, apesar da administração pública crescer a olhos vistos, isso de pouco serve. Nunca houve tantos funcionários públicos (curiosamente e paradoxalmente faltam médicos, professores e afins, mas isso é outra história), mas isso não se traduz em melhorias para os cidadãos. Pelo contrário. E arrisco dizer que, na vasta maioria dos casos, o problema nem sequer é dos funcionários, é mesmo do sistema. Porque é que um processo administrativo simples tem de passar por dois Ministérios diferentes? Se eu estou a requerer um serviço a uma entidade de um Ministério, por que raio é que eu vou pagar o serviço a outra diferente, que nem sequer é o Ministério que gere as finanças do Estado? Qual a necessidade de complicar?

Adicionalmente, demonstra um profundo problema de gestão de recursos. Além do supramencionado, há uma ineficiência gritante nos processos. Se os contactos são respondidos de mês a mês e quase sempre por pessoas diferentes, isso significa que, a cada mês, um funcionário diferente vai ter de perder tempo a inteirar-se de um processo que não conhece, para poder dizer qual a próxima ação a tomar, sendo que depois não vai ser capaz de fazer o tracking devido a essa ação. Daí a um mês, outro funcionário, com uma maneira diferente de pensar, vai sugerir uma linha de ação diferente, e o loop fútil alimenta-se. Não seria mais fácil atribuir cada processo a um funcionário, e responsabilizar esse funcionário por resolver o processo o mais rápido possível, permitindo que fosse preciso uma só pessoa inteirar-se do problema e resolvê-lo enquanto ainda se lembra dos detalhes?

Por fim, esta minha historieta demonstra também a despreocupação que o Estado quando lida com o dinheiro dos seus cidadãos. Por duas vezes, o Estado recebeu dinheiro, dinheiro esse que entrou nas suas contas e balanços, e por duas vezes pôde ver que esse dinheiro não serviu para pagar serviço algum. Porém, ao invés de alertar o cidadão que fez esse pagamento, o Estado fingiu-se de morto. Se ninguém dissesse nada, eram 40€ extra para engordar as contas do Estado, era um donativo para continuar a prestar este fantástico serviço. Como alguém reclamou, não existem processos eficientes para devolver coisa nenhuma. Só por curiosidade, no passado, já tive de requerer reembolsos a empresas ou entidades públicas de 3 países diferentes (Bélgica, Dinamarca e Canadá), incluindo situações onde eu fui inequivocamente o culpado do erro. Em todos os casos, o assunto resolveu-se numa questão de dias ao fim de 1 ou 2 emails. Em Portugal, a máquina está montada para fazer o contribuinte andar às voltas, talvez na esperança de que ele se chateie e desista, ficando o Estado a ganhar. Enfim, são maneiras diferentes de servir o cidadão.

O Estado Português é hoje uma locomotiva a carvão num tempo em que já há comboios de alta velocidade. O caricato é que já há muitos anos que pinga dinheiro da Europa para que se invista em comboios modernos. Contudo, em vez de investir nesses comboios modernos, o Estado Português insiste em usar esses fundos para retocar a pintura da locomotiva a carvão e dizer "agora é que vai ser". É urgente que algo mude. Os cidadãos precisam de comboios de alta velocidade. Portugal não tem de ser a parvónia da Europa, mas para isso é preciso vontade, sobretudo vontade política.

(Cláudio Figueiredo Costa)


 


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