A melhor explicação é quase sempre a mais simples.
Princípio de Occam
Na semana que finda, o Presidente da República fez umas declarações infelizes durante um jantar com a imprensa estrangeira. Ou pelo menos foi isso que sucedeu, a julgar pelo que se soprou cá para fora. A minha primeira reação foi, igual à de toda a gente, pavloviana. Ou seja, que o Presidente esteve mal, muito mal, e provavelmente estará demente. Da esquerda à direita, na semana que passou, bater no Marcelo foi o exercício preferido de quem vive ou comenta a política nacional. Houve excepções claro, como o Miguel Pinheiro no Observador. Mas regra geral, o professor Marcelo chumbou na avaliação da comentadoria do regime.
No entanto, passada a reação inicial, e reflectindo um pouco no que Marcelo disse, parece-me que para variar, se fez muito barulho para nada. E se formos intelectualmente honestos, não há em rigor nada de infeliz nas declarações presidenciais. O Miguel Pinheiro já explicou a classificação de rural atribuída ao novo Primeiro-Ministro. Resumindo, Marcelo descreveu o PSD como sendo um partido que abarcava gente de todo o lado, sobretudo fora de Lisboa. E daí ter classificado Luís Montenegro como rural, isto é como sendo parte dos que vêm de fora de Lisboa.Quem vê no adjectivo rural um insulto, esquece que a dicotomia cidade/aldeia é algo muito presente na cultura portuguesa. Que regra geral, o saloio da aldeia até é quem leva a melhor ao finório da vila. E por exemplo, Eça de Queiroz no seu “A cidade e as serras”, compara Paris com a aldeia de Tormes, e Paris não ficou a ganhar.
Já no que respeita às supostas características orientais de António Costa, parece-me que Marcelo se referia à personalidade do ex-Primeiro Ministro e não uma referência à ascendência indiana do mesmo. António Costa, nasceu em Lisboa, cresceu em Lisboa, estudou em Lisboa e fez a quase totalidade da sua vida em Lisboa. Um pedreiro de Melgaço que tenha ido trabalhar nas obras para Vigo tem mais mundo que António Costa. Insinuar que os genes do pai determinaram para sempre a atitude e comportamento de Costa, é no mínimo absurdo. Para não dizer mesmo racista. Novamente é perfeitamente possível ver comentários racistas no que disse Marcelo, mas é de tal forma absurdo que roça o impossível. E sejamos claros, um Presidente que caracteriza pessoas pela sua cor da pele é um Presidente que deveria ser demitido ontem. E eu não vi, não ouvi, nem li ninguém a pedir a demissão de Marcelo.
E por fim, temos a saga das reparações, ou seja que Portugal deveria compensar financeiramente as ex-colónias e o Brasil pelos crimes da administração portuguesa e pelo tráfico de escravos. O Presidente é da opinião de que o devemos fazer, embora não seja claro sob a forma. E ao contrário das outras declarações que fez, nestas Marcelo foi claro, repetiu e insistiu no que disse. Pessoalmente acho a ideia uma perfeita idiotice, sem pés nem cabeça. Não percebo nem porquê nem como, é que os portugueses de hoje são responsáveis pelo tráfico de escravos que terminou já lá vão uns duzentos anos. E no que respeita aos actos coloniais da administração portuguesa, que se julguem os seus autores se ainda estiverem vivos e se na época o que fizeram era crime. Querer legislar sobre o passado é uma caixa de Pandora que não deve ser aberta.
Embora eu considere que o Presidente está errado no que respeita ao tema das reparações, teve o condão de colocar o país a discutir o assunto. O que é normal num país que se quer livre. É de uma coincidência deliciosa que passados dias dos 50 anos de Abril, o Chega queira condenar o Presidente por ter falado. O assunto é espinhoso ? Sim, claro. Marcelo está errado ? Claríssimo como a água. Mas daí a proibir, criticar ou condenar alguém só por falar, vai uma enorme distância. Ser capaz de aceitar vozes discordantes, absurdas e até mesmo idiotas, é o mínimo que se espera de uma democracia.
Os mais cínicos vão argumentar que Marcelo, velha raposa manhosa da intriga política, disse o que disse para criar ruído e desviar as atenções das suas responsabilidades no caso das gémeas brasileiras. É possível que sim. Afinal, o Miguel Pinheiro teve que suportar a sua defesa no que foi dito num esquecido congresso do PSD no fim dos anos 70. E eu admito que as declarações de Marcelo são ambíguas o suficiente para serem interpretadas de várias formas. Mas nestes casos, siga-se o princípio de Occam: em dúvida, vale a explicação mais simples. Que neste caso é que Marcelo não disse nada de mal. E assim sendo não é necessário tanto drama nem condenações no Parlamento. Mas se a explicação estiver errada, pelo menos não haverá ruído mediático para cobrir as nefastas intenções que os críticos atribuem a Marcelo.